sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

CARTOGRAFIA DA MEMÓRIA

Por CLARA BARATA, Dezembro de 1999, Jornal Público

Submetendo ratinhos a um jogo de forma intensiva, cientistas norte-americanos conseguiram resolver uma das muitas charadas que há que decifrar até chegar a compreender o mistério da formação de memórias. Para isso, desenharam um mapa das diferentes funções dos neurónios do hipocampo, uma zona fortemente associada com a formação de memórias.
O que é que se passa no seu cérebro quando fixa um número apenas o tempo suficiente até chegar a um telefone e marcá-lo? Uma equipa de cientistas norte-americanos analisou o que se passava no cérebro de ratinhos que faziam algo de equivalente e traçou, pela primeira vez, uma espécie de mapa da formação de memórias de curto prazo no hipocampo, uma área do cérebro que se julga ser crítica para a memória.
Tanto as experiências actuais como a retenção de experiências passadas são processadas no hipocampo, uma região nos ventrículos laterais do cérebro, composta por complexas camadas de tecidos corticais. Mas, ainda que esta região do cérebro seja considerada essencial para a formação e recuperação de memórias, "a natureza da sua contribuição é controversa", como diz Howard Eichenbaum, do Laboratório de Neurobiologia Cognitiva da Universidade de Boston (Massachusetts, EUA), num comentário publicado hoje na revista "Nature", a acompanhar o artigo em que Robert Hampson, John Simeral e Sam Deadwyler, do Departamento de Fisiologia e Farmacologia da Faculdade de Medicina da Wake Forest University (em Salem, Carolina do Norte), dão conta dos seus resultados.
Estudos feitos com seres humanos indicam que o hipocampo é crucial para a formação daquilo que se chama a memória declarativa - ou seja, a capacidade de recordar experiências pessoais e de relacionar estes episódios de maneira a formar um quadro mental do mundo que nos rodeia. Um estudo feito com crianças que tinham sofrido danos cerebrais devido à falta de oxigénio - e que, por isso, sofriam de amnésia e não conseguiam recordar-se de acontecimentos do dia-a-dia - revelou que estas mesmas crianças conseguiam obter resultados escolares dentro da média. Ou seja, eram capazes de dizer que Roma era a capital de Itália, mas não se recordavam que tinham lá passado as férias.
Experiências feitas com animais, no entanto, indicam que o hipocampo tem uma função importante no que toca à memória espacial e revelaram a existência no hipocampo de células específicas para esta função - neurónios que disparam quando um animal está num determinado local, como se assinalassem a chegada a uma determinada coordenada num mapa.
Estes resultados díspares entre homens e animais não permitiram estabelecer com grande certeza as funções do hipocampo, pelo que os cientistas têm procurado resolver a charada. "Estudos feitos recentemente começam a oferecer-nos a reconciliação entre a visão 'declarativa' e 'espacial' do processamento de informação feito no hipocampo", explica Eichenbaum.
Exemplo disso pode ser um artigo publicado na revista "The Journal of Neuroscience" em 1997, em que uma equipa do Instituto de Neurologia, de Londres, usou taxistas da capital britânica para testar a importância do hipocampo nas tarefas de orientação espacial desempenhadas pelos seres humanos. Usando exames de imagem (tomografia de emissão de positrões ou PET, na sigla inglesa), espreitaram o que se passava no cérebro dos taxistas quando elaboravam mentalmente uma rota na cidade de Londres. E concluíram que havia um aumento considerável do fluxo sanguíneo àquela zona, quando pensavam como ir de Piccadily Circus para a Torre de Londres, por exemplo.
O ponto de partida da equipa que agora publica os seus resultados na "Nature" foi precisamente o de tentar conciliar estas duas visões. "Outros estudos mostraram que o hipocampo contém neurónios que codificam a informação necessária para cumprir tarefas que requerem a formação de memórias de curto prazo, independentemente de exigirem competências de navegação espacial ou não", escrevem. A sua ideia foi realizar um reconhecimento cartográfico das memórias: "Um conhecimento mais pormenorizado da anatomia funcional do hipocampo poderá permitir compreender como essa codificação ocorre."
Os investigadores colocaram ratinhos num compartimento com duas alavancas colocadas lado a lado. De início, no entanto, apenas uma da alavancas lhes era apresentada. Depois de a pressionarem, eram interessados por outra actividade qualquer - durante um período que podia durar apenas um segundo ou 40. No fim deste período de distracção, eram confrontados com ambas as alavancas. Se carregassem na alavanca que não tinham visto antes, recebiam uma recompensa; se não o fizessem, o compartimento ficava às escuras durante cinco segundos, e o teste era repetido.
O objectivo era conseguir que o ratinho se lembrasse daquele fragmento de informação e o usasse para tomar uma decisão, quando tem duas alavancas à escolha. Se o intervalo entre as situações fosse curto, os ratinhos acertavam quase sempre. À medida que se alongava, também os ratinhos tendiam a esquecer-se. Tal como os humanos e os números de telefone, comentou Sam Deadwyler, citado num comunicado de imprensa da sua universidade.
Enquanto os ratinhos estavam a ser submetidos a este treino - faziam este jogo entre 100 e 150 vezes por dia -, os investigadores estavam a ver quais os neurónios do seu hipocampo que eram activados em cada uma das fases, através de minúsculos eléctrodos, que registavam os impulsos eléctricos das suas células cerebrais. E concluíram que os padrões de activação eram diferentes, consoante a alavanca que accionavam na última fase do teste.
Os neurónios do hipocampo estão agrupados em segmentos longitudinais, que eram activados quando os ratinhos cumpriam tarefas com atributos de organização espacial. Mas, entre estes segmentos, destacavam-se outros agrupamentos de neurónios, que codificavam os aspectos não-espaciais da tarefa. Por isso, conclui a equipa de Robert Hampson, esta "segregação anatómica" - uma espécie de divisão das funções de processamento da informação por diferentes camadas - "representa uma estrutura que pode ajudar a conjugar visões contrastantes da função do hipocampo".
"Estas observações sugerem que o hipocampo é fundamental para o registo de memórias episódicas e para o seu relacionamento no seio de redes maiores da memória espacial e não-espacial", diz Eichenbaum. E conclui: "O mesmo tipo de organização funcional pode mediar a ligação de memórias episódicas - e o acesso a elas através de determinadas pistas - em vários domínios da memória humana, tal como nos animais".

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